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O bode Diabo


Nada a cativava naquela manhã

nadinha

nem o avô nem a avó nem a caseira nem o caseiro

nem as galinhas nem os patos nem os coelhos nem as ovelhas nem as cabras

e até Pneu, o rafeiro que a recebera com saltos e latidos de alegria, lhe parecia velho, gordo, feio e rabugento.

Saudosa das coisas da cidade que lhe faltavam no campo, pôs-se a deambular em redor da casa dos avós, mãos nos bolsos do vestidinho branco tão descabido naquele inóspito cenário como as sandálias de verniz que insistira em calçar

a evitar pisar caca, lesmas, lama

a evitar roçar as pernas nas urtigas e os braços nas piteiras

e a desejar que os pais se despachassem com a cena do divórcio para poder voltar para a sua cidade, a sua rua, a sua casa, o seu quarto, as suas amigas

a Bela, a Joana, a Verónica

quando, ao contornar a esquina de um barracão, deu de caras com um imponente bode branco de chifres arrebitados, sobrancelhas farfalhudas e longas barbas pardacentas como as do caseiro.

O animal pareceu tão surpreendido em vê-la como ela a ele. Entreolharam-se e, por breves momentos, permaneceram assim

ela a olhar para ele

ele a olhar para ela

até que, inesperadamente, o bode abanou a cabeça e deu um passo em frentre.

Assustada, ela recuou um passo

ele avançou outro

ela recuou outro, embateu com os calcanhares numa pedra, desequilibrou-se e caiu desamparada.

Ele estacou, esticou o pescoço e inclinou ligeiramente o focinho para a frente, a cheirar o ar

a cheirá-la a ela.

Sem nunca o perder de vista, ela levantou-se e sacudiu o vestido.

E nisto a voz aflita do avô – Cecília, caíste, filha, magoaste-te?

Ela piscou os olhos, a conter uma lágrima. – Tropecei – murmurou embaraçada. – Mas não me magoei.

E a apontar para o bode – Aquilo é o quê?

- Por onde é que tens andado, malandro – perguntou o avô, a virar-se para o bode. – Anda cá, Diabo, vem conhecer a minha neta Cecília.

O bode aproximou-se, dócil como um cão – Estás a ver – disse o avô, a afagar o pescoço do bode. – É grande, pode parecer assustador, mas não faz mal a uma mosca.

E, a pegar na mão dela – Faz-lhe uma festinha, querida

faz-lhe uma festinha que ele fica todo contente.

Ela hesitou antes de passar ao de leve a ponta dos dedos pelo lombo do bode. – Ui, avô – exclamou, a fazer uma careta. – Tem o pelo áspero.

- Aqui o Diabo pela-se por carícias e comida – disse o avô, a tirar dois figos do saco que trazia sempre a tiracolo. – Vá, dá-lhos e terás um amigo para a vida.

Ela pôs os figos na palma da mão, estendeu o braço, fechou os olhos com força e só voltou a abri-los quando sentiu a língua húmida do bode. - Faz cócegas – disse, arrepiada, a esfregar a mão no vestido.

E assim começou, entre Cecília e o Diabo, uma extraordinária cumplicidade

ela oferecia-lhe fruta que surripiava da fruteira e partilhava com ele o lanche

ele mostrava-lhe como escalar a quatro patas em terreno acidentado ou íngreme, como galgar muros ou empoleirar-se nos ramos das árvores.

- Quem me dera que fosses mais pequeno – sussurrava ela, a pôr-se em bico dos pés para lhe afagar a cabeça. – Escondia-te na mochila e levava-te comigo.

Como se entendesse, Diabo, encostava o nariz ao braço dela e reciprocava com marradinhas carinhosas.

Uma tarde ouviu a avó queixar-se ao avô – O raio do bode já não serve para nada – resmungou. – Deixou de cobrir as cabras, parece que perdeu o faro ou a vitalidade

ele, que trepava que era uma maravilha, até dava gosto ver.

O avô riu-se. - Deixa lá o pobre Diabo em paz que já cumpriu a sua obrigação – declarou. – Está velho como nós, o que é que queres

dar-lhe Viagra?

- Não – respondeu ela – Matá-lo e comê-lo

se é que ainda se aproveita qualquer coisa.

– Estás parva, Idalina - perguntou o avô, indignado. - Desde quando é que comemos criatura a quem pusemos nome?

- TU puseste-lhe nome – corrigiu ela. – Cá para mim, foi sempre o bode cobridor.

O avô abanou a cabeça – Nem pensar – declarou peremptório. - É deixá-lo andar por aí até morrer de morte natural

ou até adoecer porque, se ficar doente, abatê-lo é um favor que lhe fazemos.

- E no entretanto come tudo por onde passa – resmungou a avó. E, num à parte, acrescentou - Excepto as cabras.

- Talvez o Diabo esteja a atravessar uma crise de idade caprina – sugeriu o avô com ironia. – Quem é que nos diz que não é coisa transitória?

A avó revirou os olhos - Como contigo, não?

- Comigo, o problema é a cabra – murmurou ele entredentes.

Escondida no meio de arbustos, ela encolheu-se, apreensiva, a antever discussão

mas, para sua surpresa, desataram os dois a rir.

- Não nos podemos queixar, Idalina – lembrou o avô num tom carinhoso.

- Tens razão, Álvaro – concordou a avó - Não nos podemos queixar.

- Tudo tem o seu tempo – sentenciou o avô. – Deixa o Diabo pastar em paz e depois logo se vê.

- Seja – cedeu a avó. – Mas se o apanho outra vez na horta, limpo-lhe logo ali o sebo.

Nessa noite, às voltas na cama, ela tentou encontrar uma solução para o Diabo. Tudo lhe passou pela cabeça

matar a avó

só que não sabia como matar e, além disso, até gostava mais ou menos dela

fugir com o Diabo

esperava que estivessem todos a dormir e escapuliam-se os dois

talvez conseguisse montá-lo como montava a mula Pachorrenta

mas para onde iriam?

Depois ocorreu-lhe trocar a vida dela pela dele

mas só por um segundo

porque, na realidade, o que ela queria não era morrer, era que ele não morresse.

E a morte

fosse ela de quem fosse

do Diabo, da avó, do pai, de si própria, da mosca irritante ou do sedento mosquito, da inquietante aranha ou da peganhenta osga, da sinistra centopeia

ou de qualquer outro ser vivo

significava exactamente o quê?

Perturbada, ela sentou-se na cama como se impelida por uma mola.

Através da janela entreaberta, a brisa dava vida ao cortinado

etéreo fantasma a dançar ao som de uma melodia que ela não conseguia ouvir

e aos ramos de uma árvore

a oscilar na parede como um teatro de sombras.

Ela sentiu um nó na garganta e desviou o olhar para a cadeira ao fundo do quarto onde sentara, lado a lado, a Barbie e o Ken

e, de alguma forma, vê-los ali, serenos e imutáveis, tranquilizou-a.

De manhã, após o pequeno-almoço, enfiou duas fatias de pão e uma maçã na mochila onde metera a Barbie e o Ken e foi sentar-se debaixo da figueira, ao fundo do quintal, à espera do Diabo.

O plano dela era apresentar a Barbie e o Ken ao Diabo. - São namorados – dir-lhe-ia. - E vão ajudar-me a lembrar-te como é que se fazem os filhos

e assim, se prestares atenção e aprenderes, a avó já não vai querer matar-te e assar-te no forno.

© ananobredegusmao@gmail.com

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