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It's a wonderful world


- Que noite - exclamei mal que a Sónia abriu a porta. - Credo - disse ela assustada, a recuar um passo. - O que é que te aconteceu, Diogo, estás com um ar super janado. - Nem imaginas - respondi, a deixar-me cair no sofá. - O velhote ligou-me logo de manhã, “Sou eu, o avô”, anunciou ele, como se fosse possível eu não lhe reconhecer a voz. - O teu avô - disse ela admirada. - O teu avô ligou-te? - Para me dar os - Ah, caraças - interrompeu a Sónia, a bater com os dedos na testa. - É pá, Diogo, tu desculpa lá meu, esqueci-me completamente. - Na boa - repliquei, a fingir que não tinha ficado um bocado chateado por ela não se ter lembrado. - E eu podre de sono, a pegar no telemóvel e a ouvir a voz dele, “Sou eu, o avô”, nem me ocorreu que lhe pudesse ter dado qualquer coisinha má porque logo a seguir ele deu-me os parabéns. - Desculpa, Diogo - repetiu ela, a fazer beicinho. - Ontem tive um dia para esquecer, estás a ver, nem tempo tive para me coçar. - “Parabéns, Diogo”, repeti, a imitar a voz rouca do velhote. - “Sou eu, o avô, e estou a ligar para te dar os parabéns.” E eu, “Obrigado, avô”, respondi estremunhado, a procurar os óculos debaixo das revistas de BD que o Vítor me ofereceu. Eram oito da matina, Sónia, dá para acreditar?

- Bem, a essa hora alguns de nós já estão a caminho do trabalho - comentou ela com um sorriso trocista. - Ainda por cima, tinha estado a beber uns copos com o Vítor - continuei. - E o velhote, “Calculo que já tenhas programa”, disse ele cheio de reticências na voz. “Mas, se por acaso não tiveres, podíamos trincar qualquer coisa os dois, o que é que tu achas, filho? - Disseste que sim, espero - disse ela, a deitar-me um olhar enviezado. - Porque obviamente ele sente a tua falta. - Caraças, Sónia - retorqui, agressivo. - Um gajo que arrochou às quatro da matina não pode ter respostas assim na ponta da língua às oito, não achas? - Não - respondeu ela, a atirar para o chão a roupa empilhada no sofá e a sentar-se ao meu lado. - Jantaram? - Ya - respondi, vago. - Vá lá, Diogo, deixa-te de merdas - pediu ela, impaciente. - Jantaram? - É pá, Sónia, tu sabes que eu curto bué o velhote e que só dei de frosques porque já não aguentava aquela má onda dele, sempre a cascar, a pôr defeitos, a deitar abaixo - expliquei. - Prontos, foi ele quem me criou e reconheço que fez uma porrada de sacrifícios para me dar tudo o que nunca pôde ter, mas não era preciso estar constantemente a chamar-me a atenção e a atirar-me com isso à cara. - De certeza que a intenção não foi achincalhar - disse ela, como se soubesse do que estava a falar. - Acho que o problema deve ser tipo geracional, ou isso. - Não fazes a mínima do que estás a falar - explodi, ainda meio lixado com ela. - “Se preferires, falamos mais tarde”, sugeriu ele, a interpretar mal o meu silêncio. E eu, “No stress, velhote, na boa”

- Fizeste bem - murmurou ela.

- E topa-me só o que veio a seguir - continuei - “Gostava que pudéssemos conversar”, disse ele. “Isto assim não é bom para nenhum de nós.” - Uau - fez ela baixinho. - O teu avô é espectacular. - E prontos, fomos à pizzaria do Augusto - disse eu. - A princípio ele estava com um ar assim meio coiso, tipo desconfiado e tal, porque só grama comida portuguesa, mas também porque estava numa de conversar e sabes como é com a música no Augusto. - Devias ter escolhido outro sítio - disse ela. - Aposto que fizeste de propósito, Diogo, fizeste de propósito para não teres de o ouvir. - Juro-te que não me lembrei do barulho - neguei com veemência. - Foi galo. - Ya - disse ela num tom meigo, a dar-me a mão. - Foi galo. - Mas ainda não te contei o melhor - acrescentei. - Depois do jantar, o velhote insistiu que devíamos beber um copo à minha saúde e levei-o ao Ben’s - Ao Ben’s - interrompeu ela, a largar a minha mão. - Passaste-te, ou quê? - Por sorte o ambiente ainda estava tranquilo - repliquei. - E o velhote emborcou dois uísques e ficou na boa, de repente dei por ele a abanar a mona e a bater o pé ao ritmo das cenas que o marado do DJ punha, era o Bilucas, estás a ver? - Não posso - exclamou a Sónia boquiaberta. - O teu velhote a curtir no Ben’s?

- Podes crer - afirmei. - E andava lá uma chavala a dar-lhe troco e ele, todo entusiasmo, a puxar-me pela manga, “É pá, filho, isto está bestial”, gritou ele. "Conheces aquela miúda?” - Não posso - repetiu ela, a soltar uma gargalhada. - E conhecias a gaja? - Não - respondi. - E inclinei a cabeça para lhe dizer isso e ao mesmo tempo ele aproximou a dele e, sem querer, demos uma cabeçada do caraças um no outro e o velhote desequilibrou-se e bateu com a mona no balcão. - Ui - disse a Sónia com um ar aflito. - E magoou-se? - Primeiro ficou assim meio abananado - descrevi. - E a seguir queixou-se que lhe doía a cabeça e eu perguntei ao Bilucas se tinha alguma treta para dores. - Foste perguntar ao Bilucas - perguntou ela, incrédula. - Foste pedir comprimidos ao Bilucas, Diogo, estás parvo ou quê, o gajo só tem pastilhas, meu. - Ya - concordei. - Foi estúpido. - Não me digas que o Bilucas lhe deu mesmo uma pastilha - disse ela escandalizada . - Não me digas que ele lhe deu uma pastilha e disse que era - Ya - interrompi. - Mas eu só pensei disso quando ele se pôs a dançar à frente da chavala, havias de o ver, Sónia, o pessoal todo ali a curtir a cena e a bater palmas, era só rir, até que, de repente, ficou baita branco e caiu redondo no meio do chão. - Coitado - disse ela, a olhar para mim com um ar consternado. - Foi parar ao hospital e tudo - continuei. - E o médico quis saber o que tinha acontecido e fartou-se de rir quando eu lhe descrevi a cena. - Oh, Diogo - fez ela, a arregalar os olhos. - E ficou internado?

- Népia - disse eu, a rir-me. - Ainda não tínhamos chegado ao hospital já o velhote estava a mandar vir com o bombeiro, “Pare-me esta porra e deixei-me sair aqui que eu já estou bom e conheço o caminho.” Incrível, Sónia. - Mas fizeram-lhe alguma coisa - insistiu ela. - Algum exame ou assim? - Acho que não - respondi. - Deram-lhe uma injecção não sei de quê e disseram-me para o levar para casa. E eu levei-o e, à porta, o gajo deu-me um abraço, “Obrigado, puto", disse ele todo lamechas, "Deste-me a melhor prenda que se pode dar a um velho como eu." E eu ali a olhar para ele com cara de parvo, Sónia, dei o quê, se foi ele quem pagou tudo?

- É uma metáfora, Diogo - disse ela, a armar-se. - O que o teu velhote quis dizer foi que

- Eu sei - interrompi com impaciência. - E a olhar para mim com um ar assim, sei lá, meio atrofiado ou isso, "Importas-te de pedir ao teu amigo o contacto daquela rapariga simpática com quem dancei", segredou-me ele ao ouvido, como pudesse estar alguém a ouvir. “Nada de especial, só para lhe agradecer a gentileza, percebes?”

- Extraordinário - murmurou ela. - E conseguiste o contacto dela?

- Nem sequer tentei - respondi. - Mas disse-lhe que tinha tentado mas ninguém a conhecia e ele encolheu os ombros e prontos, agora estamos os dois na boa e eu já decidi que no Natal lhe vou oferecer um CD com o It's a Wonderful World do Louis Armstrong, que é a música que ele mais curte, mas na versão dos Ramones, o que é que achas, Sónia, tipo assim uma cena simbólica, género um compromisso entre o meu mundo e o dele. - Acho fixe - murmurou ela, a dar-me um beijo.


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