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Ando a sonhar com a praia


desde que este maldito vírus me pôs de quarentena.

O cheiro a maresia, a espuma das ondas, a brisa morna a acariciar-me o corpo, a areia quente sob os meus pés, eu deitada na toalha, sentada à beira-mar, a ler, a dormitar, a esfregar loções de bronzear com a indolência de um gato que se lambe ao sol, a sentir o sabor a sal nos lábios, a fazer absolutamente nada, a contemplar o horizonte ou a seguir o lento deslizar de um navio, até um espirro do meu marido me trazer novamente ao cinzento, tudo é cinzento à minha volta, as nuvens, a chuva, os prédios, estas paredes que me confinam, a mobília, a alcatifa, o fato de treino dele e, no écran do televisor, onde segue obsessivamente o devastador percurso da pandemia que condenou o mundo ao isolamento forçado e ao pavor de uma ameaça que não se vê nem se pressente mas que é assustadoramente omnipresente, as cores como que esmorecem a cada dia que passa.

Volto a fechar os olhos, deixo o corpo escorregar lentamente na cadeira

e lá vou eu, direitinha à praia, saco a tiracolo e guarda-sol debaixo do braço, feliz por me cruzar com gente sorridente que, como eu, precisa de conviver com o mar, de estar na praia, de embalar a vida com a cadência do marulho e nem sequer me importo quando ao sonho se sobrepõe o pesadelo daquele ror de gente que chega primeiro do que eu e se espraia ruidosamente por todo o lado, aluga todos os toldos e todas as barracas, esgota as águas engarrafadas, os refrigerantes, os gelados, as bolas de Berlim e as batatas fritas, o papel higiénico e os toalhetes de papel das casas de banho públicas, ocupa todas as mesas nas esplanadas, chafurda à beira-mar, todos apertadinhos uns contra os outros como se a praia fosse o prolongamento do Metro.

E eu ali no meio deles, ensanduichada entre uma gorda luzidia que leva compulsivamente à boca mini pastéis de bacalhau e duas criancinhas que se agridem mutuamente com baldes de areia, a gramar o pivete a óleo rançoso, a bacalhau, a suor e a gomas, que me irritam a garganta e me interrompem o sonho.

Reabro os olhos e deparo com o bloco de nylon cinzento em que se transformou o meu marido, em pé em frente ao televisor e, a pensar que, mal por mal, antes a gorda a palitar os dentes com a unha do mindinho, volto a fechá-los com obstinada determinação.

Ajeito-me na toalha e suspiro de felicidade, o pesadelo chegou finalmente ao fim, acabou-se o confinamento, o distanciamento social, as máscaras, as luvas de plástico, o medo e os olhares assustados, apreensivos, acusadores, zangados, tristes e deprimidos, doravante tudo será como dantes mas melhor, o maldito vírus a fazer-nos relativizar umas coisas e a valorizar outras, como a liberdade de poder estar na praia, quando um idiota qualquer passa rente a mim a correr e me enche de areia. Furiosa, sento-me, a cuspir areia e olho em redor, a ver se alguém se acusa. Para minha surpresa, no lugar da gorda está agora um tipo de porte atlético que olha para mim sorridente e me oferece uma delicada estrela-do-mar. – Para ti – diz num tom de voz profundo e sensual.

- Para mim - pergunto atónita.

Ele tira os óculos escuros e envolve-me com um olhar tão escaldante como o sol. - Reparei em ti mal cheguei - diz, a colocar sugestivamente uma haste entre os lábios.

Perturbada, tento lembrar-me de algo interessante para dizer quando, inesperadamente, uma voz vinda das entranhas da terra chama por mim. – Então, Áurea, outra vez a dormir que nem uma porca – pergunta o meu marido, a abanar ao de leve o meu ombro.

Esfrego os olhos e a regresso ao cinzento da sala, da mobília, da alcatifa, do tempo invernoso, do fato de treino do meu marido. - Não estava a dormir - protesto. - Estava distraída, a pensar que

- O Estado não te paga para estares distraída – interrompe ele. – Teletrabalho não é o mesmo que férias e quem está em lay off sou eu, não tu.

- O chefe que me mande mais trabalho – resmungo. – Sonhar nunca fez mal a ninguém.

- Razão tem a minha irmã em chamar-te Aérea – troça ele, antes de voltar para o posto de vigia, em frente ao televisor.

Endireito-me na cadeira, pressiono o rato e no écran do computador aparece uma das inúmeras fotos que tenho de praias. Lusco-fusco, mar espelhado e estranhamente calmo, areal cheio de pegadas desordenadas, praia quase vazia, as últimas pessoas a caminharem para os degraus, sandálias numa mão, toalha na outra.

- Oh, só reparaste em mim porque já não estava ninguém na praia - respondo ao homem de porte atlético que me ofereceu a estrela-do-mar.


© ananobredegusmao@gmail.com

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