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A cleptomaníaca


Sou simultaneamente cleptomaníaca e a maior dor de cabeça do meu filho Francisco

trinta e cinco anos feitos e ainda a viver comigo porque diz que não tem tempo para mulheres.

- Mãe, as mulheres são uma seca, só dão problemas - não se cansa de dizer. - E, para problemas, já me bastam os que a mãe me dá.

Até certo ponto eu dou-lhe razão, se bem que, e aqui entre nós, um filho de trinta e cinco anos que ainda vive com a mãe é assim, tipo, um bocadinho estranho, um bocadinho anormal (e por falar em anormal, haviam de ver o psiquiatra a que ele me levou

como se fosse eu a precisar de tratamento).

- É um fenómeno de autocompensação que vem da infância - declarou o psi num tom condescendente. - Negligência e carência afectiva profunda são exemplos das possíveis causas dessa obsessão e o roubo traduz-se numa desesperada necessidade de atenção.

- Então e aquela actriz que roubava, doutor - perguntei inocentemente. - Não me venha cá dizer que o que faltava à Winona Ryder era atenção

um palminho de cara daqueles e talentosa ainda por cima?

Ele tossicou, a aclarar a voz. - Receio não estar a par do caso dessa senhora por isso não estou abalizado para dar uma

- A minha mãe não era assim - interrompeu o meu filho, a olhar para o relógio com um ar apreensivo. - Se roubava em pequena não sei, como é óbvio eu ainda não existia mas, caso fosse o caso, sabia-se porque as taras são como pólos de atracção nas famílias, não é, doutor, e as histórias passam de geração em geração

por exemplo, há o caso de um tio meu pela parte do

- O doutor quer lá saber do problema do teu tio - cortei indignada (afinal estávamos ali para falar das taras do pobre do Edgar ou das minhas?)

- A mãe - disse o meu filho num murmúrio - ficou assim desde a morte do meu pai.

- Ah - exclamou o doutor. – Interessante.

Eu encolhi os ombros e baixei os olhos. - O que é que queres, filho – perguntei, a rodar as duas alianças no anelar. - Adorava o teu pai, era a minha razão de viver, o meu oxigénio, a brisa que me refrescava nas abrasadoras tardes de verão, o sol que me aquecia nos sombrios dias de inverno, a luz que me guiava (confesso que tenho um certo pendor dramático que me compraz caprichar com pequenas pinceladas poéticas)

por isso tenta perceber, Francisco, eu não faço de propósito, não é por mal, está aqui o doutor que não me deixa mentir e te pode explicar, é uma doença e a gente não tem culpa de ficar doente

pronto, compreendo que seja embaraçoso para ti, para mais agora que foste promovido lá no banco e tudo, mas prometo que, de hoje em diante, tomo os comprimidos todos que o doutor achar por bem receitar e não falto às consultas

juro que hei de fazer tudo para me curar.

Claro que não fiz nada disso e, como consequência, ele desistiu do psiquiatra, pôs lá em casa a solteirona da prima Odete e condenou-me a tê-la sempre colada a mim como uma sombra

quer vá ao supermercado, à drogaria, ao centro comercial ou ao cabeleireiro

mesmo que troveje ou que o sol esteja a pique.

- Meta as mãos nos bolsos, prima - diz ela naquela vozinha branda (a tresandar veneno lento).

- Prima, mãozinhas nos bolsos, se faz favor - insiste, a franzir o sobrolho peludo. - Se não mete as mãos nos bolsos, telefono ao Francisquinho para nos vir buscar e acaba-se o passeio.

E eu meto, o que é que hei de fazer, mas de preferência com qualquer coisinha que veio atrás

um verniz para as unhas (que não uso)

um batom (que ofereço à minha vizinha)

uma latinha de comida para gato (que dou à porteira)

uma tablete de chocolate (que devoro mal chego a casa, às escondidas e sem lhe oferecer nem um único quadradinho).


© Ana Nobre de Gusmão@gmail.com



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